quinta-feira, 18 de junho de 2009

"o que vocês esperam de crianças que adolescem entre bombas? pombas?"

quando eu era mais nova tinha uma daquelas agendas tribus, e aíaprendi essa frase numa delas. foi na década de 90, bem antes de euentender que era sapatão. lembrei dela hoje, enquanto via na internetnotícias sobre a parada lgbt de são paulo, no domingo passado (14 dejunho). li dois jornais da grande mídia corporativa, pra ficar passadacom o trato dado ao ATENTADO HOMOFÓBICO que aconteceu já na noite dodomingo 14. um dos jornais chamou a BRUTAL TENTATIVA DE ASSASSINATOque uma pessoa anônima, moradora da avenida vieira de carvalho, de"irritação com o barulho". transcrevo: "No episódio mais grave, por volta das 22h, o morador de um edifíciona avenida Vieira de Carvalho (centro) se irritou com o barulho depessoas que dispersaram da festa e jogou uma bomba caseira no grupo.Segundo a Polícia Militar, 30 pessoas ficaram levemente feridas peloartefato. O morador não foi identificado." (folha de sp, 15/06) sei que no brasil existe esse costume, legado de uma ditadura militarrecente que durou mais de 20 anos, de acionar demais a polícia praresolver assuntos comunitários. tipo, festa barulhenta na vizinhançaaté altas horas no meio da semana? chama a polícia. passamos por issoaqui em casa várias vezes, mas nada me convence de que a vizinha"irritada com o barulho" em questão, uma senhora advogada que me viucrescer à sua relevia y pra seu espanto, não fica irritada é com aescolha que fizemos por não termos uma vida secreta, por ficarmosconversando na porta de casa enquanto nos beijamos, abraçamos,rimos... mas oficialmente ela reclama do barulho e diz que vai chamara polícia.a esse tipo de conduta reacionária estou, infelizmente, já acostumada,mas, felizmente, segura o bastante pra agir com firmeza e dizer "ok,pode chamar". o que me angustia, agora, pós-atentado de 14 de junho, épensar na possibilidade de receber uma bomba no meio do pagode dedomingo. do terrorismo de estado, com sua polícia racista assassina,eu infelizmente já estou mais amortecida também. mas terrorismo devizinhança eu não dou conta. isso tira meu chão, me rouba de um dosafetos mais preciosos a que me apego: a idéia de comunidade comoespaço de convivência também de conflitos, que podem ser resolvidoscom uma conversa, um convite pra próxima festa, uma gentileza.pode ser que a vizinha, lendo o jornal do dia 15, decida aprender afazer uma bomba (como qualquer pessoa pode aprender procurando umtutorial na internet) ao invés de ficar me ameaçando, dizendo que vaichamar a polícia quando estamos fazendo barulho. porque o jornal, aotratar o atentado como uma "irritação", legitima o uso de violênciasextremadas pra resolver conflitos comunitários e ainda mascara agravidade do fato ao citar o evento como se fosse de uma naturalidadecorriqueira, perfeitamente justificável em casos de "irritação combarulho".no dia da maior parada nacional de orgulho LGBT uma bomba não élançada da janela por "irritação com o barulho". uma bomba é jogadaporque vivemos numa sociedade heterossexista que persegue, condena epune qualquer possibilidade de expressão de afeto e prazer (sexual ounão, silenciosa ou barulhenta, explícita ou velada) entre pessoas demesmo sexo/gênero, e estende essa punição às tentativas de exercíciolivre de expressões ou orientações de sexo/gênero que contrariem aforçadamente fingida "naturalidade" do heterossexualismo, com suaatribuição asfixiante, fixa e fictícia de papéis determinados amulheres e homens.o enorme pudor moralista (cristão!) que ronda a aprovação do plc 122,que criminaliza a homofobia, é só mais uma dessas ferramentas demascarar as coisas. o principal argumento da bancada evangélica contraa criminalização é que isso cercearia a "liberdade de expressão", essemaravilhoso bem garantido constitucionalmente. LIBERDADE DE EXPRESSÃO,NO BRASIL, JÁ É CERCEADA! evidência disso é o acesso à produção demídia no brasil, completamente elitista, misógino e branco. de quemsão os grandes jornais brasileiros? estão a serviço de que interesses?o dono do jornal de maior circulação em brasília é o vice-governador!é por isso que ninguém vai ler, no tal jornal, que a campanha que ogoverno arruda fez pra expulsar travestis de seu local tradicional detrabalho em brasília, o setor comercial sul, é uma política de governocompletamente transfóbica, que prega assepsia social e higienizaçãourbana fundamentada pelo moralismo heterossexista, cristão, racista ecapitalista que governa os interesses do estado. não é possívelexistir liberdade de expressão ampla, irrestrita, democrática ecomunitária num país em que o acesso a bens culturais é elitizado,embranquecido, heterocentrado. não são as travestis que escrevem osjornais que as tratam como lixo social!criminalização de condutas é outra daquelas heranças ditatoriais.negritude é caso de polícia. movimento social é caso de polícia.reforma agrária é caso de polícia. trabalho autônomo, pratrabalhadoras do sexo, é caso de polícia. sexualidade livre, sedivergente de um padrão tido como correto, é caso de polícia, écriminalizada. então me espanta o horror que a bancada evangélica temao plc 122. e me espanta essa política de criminalização em massa decondutas. como ativista negra, lesbiana, feminista, fico triste de verque essa é uma de nossas principais bandeiras hoje: pedir que maiscondutas sejam consideradas crimes. porque isso significa, no fim dascontas, mais sistemas de vigilância e punição, e mais gente nascadeias (que só confinam gente preta, gente pobre - majoritariamentepreta num país que cresceu a partir da escravização negra, genteputa...)óbvio que são medidas drásticas, imediatistas, que precisam sertomadas frente a conflitos urgentes. a criação da lei maria da penha éconsiderada, então, uma vitória das mulheres. mas teve gente quepensou que com ela os homens não iam mais espancar mulheres... o quenão aconteceu. agora os homens são presos, ficam fervendo de ódio dasmulheres que os denunciaram, e saem da cadeia (que já é bem conhecidacomo uma escola de crime, mas não de recuperação nem de reinserção,até porque é bem contraditório tentar reinserir alguém na sociedade apartir da restrição de sua liberdade) prontos pra continuar sendohomens.no caso de estupradores, é tão dramático quanto. um estuprador temduas chances na cadeia: ou se enforca ou "vira mulher". ATENÇÃO! se apunição a um macho que violentou uma mulher é ser tratado, por outrosmachos, como ele tratou a mulher que violentou, que círculo viciosoestá sendo alimentado com isso? o de um imaginário misógico quecontinua punindo as mulheres por serem mulheres, com penetraçãonão-consensual e violenta, enquanto dá aos homens: 1) o benefício doestupro como ferramenta de punição das mulheres (por serem mulheres,i.e., inferiores), 2) um instrumento de reafirmação de seu poder deser homem (i.e., poder de penetrar) e 3) a garantia de que essaviolação não é passível de pena a partir da masculinidade (ou seja, amasculinidade é uma estrutura impune, já que pra punir estupradores,eles são tratados como mulheres).eu entendo a importância política da luta pela criminalização dahomofobia. mas ela só faz sentido se pensada dentro desse tipo demundo em que o exercício da expressão afetiva ou sexual livre vaicontinuar sendo penalizada, não-aceita, meramente tolerada a partir demecanismos que coíbem sim a violência contra quem ousa dizer seu afetodivergente de uma norma estabelecida, mas não vai dar conta dedinamitar as estruturas de pensamento e ação que pregam o desafeto aoque é entendido como diferente (daquele "normal"). a criminalização dahomofobia não vai acabar com a lesbofobia, com a transfobia, com ahomofobia, com a bifobia.vai funcionar pra deixar pessoas homofóbicas cientes de que há um novoacordo social, relativo ao código penal, que pune determinadasviolências, mas vai fazer alguém pensar em heterossexualidade como umaorientação sexual forçada, repetida maciçamente até a exaustão; seráque vai fazer alguém pensar, como nunca admitiu pensar antes, em seenvolver de outras maneiras com as pessoas? vai fazer as pessoasabandonarem o conforto do heterossexualismo ou pelo menosquestioná-lo, vê-lo como uma opção e não uma determinação natural edivina? vai fazer as pessoas pararem de querer jogar bombas na gente,ou só vai impedi-las de jogar pelo medo de ir pra cadeia?

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quinta-feira, 18 de junho de 2009

"o que vocês esperam de crianças que adolescem entre bombas? pombas?"

quando eu era mais nova tinha uma daquelas agendas tribus, e aíaprendi essa frase numa delas. foi na década de 90, bem antes de euentender que era sapatão. lembrei dela hoje, enquanto via na internetnotícias sobre a parada lgbt de são paulo, no domingo passado (14 dejunho). li dois jornais da grande mídia corporativa, pra ficar passadacom o trato dado ao ATENTADO HOMOFÓBICO que aconteceu já na noite dodomingo 14. um dos jornais chamou a BRUTAL TENTATIVA DE ASSASSINATOque uma pessoa anônima, moradora da avenida vieira de carvalho, de"irritação com o barulho". transcrevo: "No episódio mais grave, por volta das 22h, o morador de um edifíciona avenida Vieira de Carvalho (centro) se irritou com o barulho depessoas que dispersaram da festa e jogou uma bomba caseira no grupo.Segundo a Polícia Militar, 30 pessoas ficaram levemente feridas peloartefato. O morador não foi identificado." (folha de sp, 15/06) sei que no brasil existe esse costume, legado de uma ditadura militarrecente que durou mais de 20 anos, de acionar demais a polícia praresolver assuntos comunitários. tipo, festa barulhenta na vizinhançaaté altas horas no meio da semana? chama a polícia. passamos por issoaqui em casa várias vezes, mas nada me convence de que a vizinha"irritada com o barulho" em questão, uma senhora advogada que me viucrescer à sua relevia y pra seu espanto, não fica irritada é com aescolha que fizemos por não termos uma vida secreta, por ficarmosconversando na porta de casa enquanto nos beijamos, abraçamos,rimos... mas oficialmente ela reclama do barulho e diz que vai chamara polícia.a esse tipo de conduta reacionária estou, infelizmente, já acostumada,mas, felizmente, segura o bastante pra agir com firmeza e dizer "ok,pode chamar". o que me angustia, agora, pós-atentado de 14 de junho, épensar na possibilidade de receber uma bomba no meio do pagode dedomingo. do terrorismo de estado, com sua polícia racista assassina,eu infelizmente já estou mais amortecida também. mas terrorismo devizinhança eu não dou conta. isso tira meu chão, me rouba de um dosafetos mais preciosos a que me apego: a idéia de comunidade comoespaço de convivência também de conflitos, que podem ser resolvidoscom uma conversa, um convite pra próxima festa, uma gentileza.pode ser que a vizinha, lendo o jornal do dia 15, decida aprender afazer uma bomba (como qualquer pessoa pode aprender procurando umtutorial na internet) ao invés de ficar me ameaçando, dizendo que vaichamar a polícia quando estamos fazendo barulho. porque o jornal, aotratar o atentado como uma "irritação", legitima o uso de violênciasextremadas pra resolver conflitos comunitários e ainda mascara agravidade do fato ao citar o evento como se fosse de uma naturalidadecorriqueira, perfeitamente justificável em casos de "irritação combarulho".no dia da maior parada nacional de orgulho LGBT uma bomba não élançada da janela por "irritação com o barulho". uma bomba é jogadaporque vivemos numa sociedade heterossexista que persegue, condena epune qualquer possibilidade de expressão de afeto e prazer (sexual ounão, silenciosa ou barulhenta, explícita ou velada) entre pessoas demesmo sexo/gênero, e estende essa punição às tentativas de exercíciolivre de expressões ou orientações de sexo/gênero que contrariem aforçadamente fingida "naturalidade" do heterossexualismo, com suaatribuição asfixiante, fixa e fictícia de papéis determinados amulheres e homens.o enorme pudor moralista (cristão!) que ronda a aprovação do plc 122,que criminaliza a homofobia, é só mais uma dessas ferramentas demascarar as coisas. o principal argumento da bancada evangélica contraa criminalização é que isso cercearia a "liberdade de expressão", essemaravilhoso bem garantido constitucionalmente. LIBERDADE DE EXPRESSÃO,NO BRASIL, JÁ É CERCEADA! evidência disso é o acesso à produção demídia no brasil, completamente elitista, misógino e branco. de quemsão os grandes jornais brasileiros? estão a serviço de que interesses?o dono do jornal de maior circulação em brasília é o vice-governador!é por isso que ninguém vai ler, no tal jornal, que a campanha que ogoverno arruda fez pra expulsar travestis de seu local tradicional detrabalho em brasília, o setor comercial sul, é uma política de governocompletamente transfóbica, que prega assepsia social e higienizaçãourbana fundamentada pelo moralismo heterossexista, cristão, racista ecapitalista que governa os interesses do estado. não é possívelexistir liberdade de expressão ampla, irrestrita, democrática ecomunitária num país em que o acesso a bens culturais é elitizado,embranquecido, heterocentrado. não são as travestis que escrevem osjornais que as tratam como lixo social!criminalização de condutas é outra daquelas heranças ditatoriais.negritude é caso de polícia. movimento social é caso de polícia.reforma agrária é caso de polícia. trabalho autônomo, pratrabalhadoras do sexo, é caso de polícia. sexualidade livre, sedivergente de um padrão tido como correto, é caso de polícia, écriminalizada. então me espanta o horror que a bancada evangélica temao plc 122. e me espanta essa política de criminalização em massa decondutas. como ativista negra, lesbiana, feminista, fico triste de verque essa é uma de nossas principais bandeiras hoje: pedir que maiscondutas sejam consideradas crimes. porque isso significa, no fim dascontas, mais sistemas de vigilância e punição, e mais gente nascadeias (que só confinam gente preta, gente pobre - majoritariamentepreta num país que cresceu a partir da escravização negra, genteputa...)óbvio que são medidas drásticas, imediatistas, que precisam sertomadas frente a conflitos urgentes. a criação da lei maria da penha éconsiderada, então, uma vitória das mulheres. mas teve gente quepensou que com ela os homens não iam mais espancar mulheres... o quenão aconteceu. agora os homens são presos, ficam fervendo de ódio dasmulheres que os denunciaram, e saem da cadeia (que já é bem conhecidacomo uma escola de crime, mas não de recuperação nem de reinserção,até porque é bem contraditório tentar reinserir alguém na sociedade apartir da restrição de sua liberdade) prontos pra continuar sendohomens.no caso de estupradores, é tão dramático quanto. um estuprador temduas chances na cadeia: ou se enforca ou "vira mulher". ATENÇÃO! se apunição a um macho que violentou uma mulher é ser tratado, por outrosmachos, como ele tratou a mulher que violentou, que círculo viciosoestá sendo alimentado com isso? o de um imaginário misógico quecontinua punindo as mulheres por serem mulheres, com penetraçãonão-consensual e violenta, enquanto dá aos homens: 1) o benefício doestupro como ferramenta de punição das mulheres (por serem mulheres,i.e., inferiores), 2) um instrumento de reafirmação de seu poder deser homem (i.e., poder de penetrar) e 3) a garantia de que essaviolação não é passível de pena a partir da masculinidade (ou seja, amasculinidade é uma estrutura impune, já que pra punir estupradores,eles são tratados como mulheres).eu entendo a importância política da luta pela criminalização dahomofobia. mas ela só faz sentido se pensada dentro desse tipo demundo em que o exercício da expressão afetiva ou sexual livre vaicontinuar sendo penalizada, não-aceita, meramente tolerada a partir demecanismos que coíbem sim a violência contra quem ousa dizer seu afetodivergente de uma norma estabelecida, mas não vai dar conta dedinamitar as estruturas de pensamento e ação que pregam o desafeto aoque é entendido como diferente (daquele "normal"). a criminalização dahomofobia não vai acabar com a lesbofobia, com a transfobia, com ahomofobia, com a bifobia.vai funcionar pra deixar pessoas homofóbicas cientes de que há um novoacordo social, relativo ao código penal, que pune determinadasviolências, mas vai fazer alguém pensar em heterossexualidade como umaorientação sexual forçada, repetida maciçamente até a exaustão; seráque vai fazer alguém pensar, como nunca admitiu pensar antes, em seenvolver de outras maneiras com as pessoas? vai fazer as pessoasabandonarem o conforto do heterossexualismo ou pelo menosquestioná-lo, vê-lo como uma opção e não uma determinação natural edivina? vai fazer as pessoas pararem de querer jogar bombas na gente,ou só vai impedi-las de jogar pelo medo de ir pra cadeia?

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